29 de outubro de 2011

Oração do Coração

Oração do Coração

(Tabula Rasa ou Vazio Interior)

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No silêncio do coração, na solidão da madrugada, manifesta-se uma epifania imprescindível da presença de Deus...
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Finda-se o dia. A agonia recomeça. A madrugada se arrasta pesada e lenta como uma serpente negra... Densas e profundas trevas de angústia e ansiedade descem sobre minha alma... Agonizo experimentando a solidão em cada pedaço do meu ser... A alma estilhaça-se em muitos cacos...
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Desesperado feito uma criança desamparada, curvo-me perante Deus e oro. Não me responde as orações. A alma sobrecarrega-se de amarguras e descontentamento, o espírito agoniza em desordem e confusão. Oro uma vez mais. O céu ainda assim não se comove, permanece em silêncio diante de minhas preces. As lágrimas brotam dos olhos e escorrem pelo rosto. A respiração torna-se pesada e difícil. O fardo da existência torna-se cada vez mais insuportável...
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Onde está o alívio e o conforto prometido? Venham a mim todos os que estais cansados e sobrecarregados... Então eu não fui? Não estou aqui? Então eu não cri? Desprezas minha fé porque ela é menor que um mísero grão de mostarda?
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Minha alma se impacienta diante das promessas não compridas... Sob o jugo do fardo de ansiedades e preocupações, a alma se prosta num choro desesperado. Se ao menos Ele voltasse um instante apenas a face em minha direção...
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Deito-me para dormir, mas não consigo conciliar o sono... A alma faminta agita-se sob terrível temporal de angustia. Elevo os olhos ao céu, mas minha boca agora permanece muda... Então - coisa estranha isso -, de repente uma intuição. É isso, as palavras que me escapam da boca são todas palavras superficiais, vãs e sem profundidade, são resquícios de uma guerra sem tréguas entre pensamentos e pensamentos, entre desejos e desejos, batalha desesperada de ansiedade com ansiedade, caos dinamizado pelo caos... São palavras que não falavam do que há nas profundezas do coração. Falavam de ansiedades, falavam de medo, falavam de tristeza e de solidão, contudo o coração permanecia mudo, sufocado pelo falatório da boca. A boca falava das coisas da superfície da carne, não das profundezas do coração. Era como se eu não estivesse presente em mim mesmo. O coração estava como que encoberto por um denso nevoeiro... A boca falava, mas o coração permanecia agonizantemente mudo. Não falava de fato com Deus, porque nada tão superficial pode ser chamado de oração. Era palavras nascidas de devaneios, ilusões, desesperos, medos e pensamentos em voz alta, tudo, menos oração. Porque oração só é oração quando é brotada das profundezas e da calma do coração, porque enquanto a boca não falar do que está cheio o coração, enquanto o nevoeiro das ilusões e ansiedades que envolvem e escondem o íntimo do ser não se dissipar completamente, ainda não é oração o que a boca fala, é apenas tagarelar de palavras sem sentido. Não é aliviar-se, é somar peso com peso, fardo com fardo, desgosto com desgosto.
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Então, num de repente, eu entendi que a verdadeira oração é como uma fratura exposta. Não é nem razão nem sentimento, é silêncio interior... Não é saber, é não-saber. É renúncia completa até mesmo da nossa idéia de Deus ou de milagre, uma vez que essas nossas idéias de Deus e de milagres geralmente estão erradas. Ainda com medo que isso não seja compreendido, diria que é um desnudar-se do próprio Deus, porque nossa idéia preconcebida, nossos conceitos e preconceitos sobre Deus não raro se interpõem entre nós e Deus, que é inominável. Por isso oração é alguma coisa como um corte profundo na carne, que a faz sangrar e doer, provocando uma catarse que há de resultar na absoluta libertação dos entraves da razão e dos pensamentos desordenados que turvam a alma e cala a voz do coração... É um desvendar, um retirar o véu que oculta o que está dentro do coração, que oculta até mesmo o próprio coração; um revelar dos vislumbres da essência interior mediante uma compenetração plena no silêncio e vazio do coração. É um por para fora a alma, às vezes num desespero de gemidos inexprimíveis... É um desabafo. É mais que desabafo, é uma incontrolável ânsia de vômito, uma enxurrada que não pode ser contida. É grito da alma. É um basta da mesmice dos pensamentos e sentimentos. É um clamor desesperado por coisas novas... É um desnudar completo do próprio ser, não num provocante strip-tease, mas sim numa fúria incontida de rasgar a roupa e expor a nudez de uma vez só, mostrando e expondo as feridas, manchas e segredos da alma, retirando completamente a máscara, até mostrar a face por completo, pondo de lado a hipocrisia e o medo de ser si mesmo, ao menos por um instante... Um quase enlouquecer. É uma confissão.
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Por isso mesmo a verdadeira oração deve ser feita em reservado, no interior do próprio coração, prostrado em profundo recolhimento interior, em silêncio, porque orar não é nada mais que descer as profundezas do próprio coração, e ali permanecer recolhido numa atitude que é mais escutar, que falar... O muito falar não é orar, mas sim o muito escutar. No trato com Deus, mais vale ouvir que falar.
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Tomando por essa intuição repentina, instintivamente recolhi-me em meu interior e ali fiquei não sei por quanto tempo, mudo, prostrado. Os pensamentos e as idéias, como uma crosta grossa e rígida a me encobrir a luz do coração, iam e vinham com fúria dobrada... Deixei-os todos libertos, soltei as rédeas completamente, e em pouco tempo a mente ficou cheia dos mais terríveis pensamentos. A ansiedade ganhou formas terríveis de verdadeiros e delirantes demônios... Não movi uma pena para domá-los, ou demove-los da mente. Cada pensamento ia e vinha livremente. Eu não queria expulsa-los. Eu queria vê-los, observá-los de perto, saber como eram. Observava-os apenas, impassível. Mantive essa atitude de contemplação da mente não sei por quanto tempo, até que coisas estranhas afloraram à superfície da alma, que se tornou violenta, impaciente, argumentativa e provocante. Argumentar com ela era como argumentar com o demônio. Mantive-me calado.
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Finalmente depois de um tempo – que não sei quanto tempo foi - os pensamentos foram como que se organizado, e a mente antes fragmentada foi tornando-se Uma mente, recuperando sua calma e criatividade original, e, imerso nas profundezas dessa calma interior, eu pude ver e ouvir claramente os meus pensamentos, e tambem reconhecer qual era a natureza e a origem de cada um deles.
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Por fim, o mar antes agitado por muitas ondas e marés de ansiedade, foi pouco a pouco se acalmando e recuperando seu estado original de tabula rasa. Finalmente a superfície ficou completamente calma, e as águas antes turvas ficaram límpidas. A alma serenou. A lama se assentou no fundo do lago, e a alma ficou cristalina... Não havia mais ondas de pensamentos descontrolados, nem vendavais de ansiedades, muito menos o rugido dos desejos descontrolados. Eu agora estava em paz, e em silêncio..., e havia alguma coisa de mistério e de sagrado naquele silêncio. Uma alegria desconhecida impregnou-se em mim. Comecei a sentir uma presença inefável ao meu lado... Recusei qualquer tentativa de compreender esse silêncio, abri o coração e submergi nele. A alma refrigerou-se. A simples idéia de querer compreendê-lo, já é perdê-lo. Além da contemplação desse momento nenhum papel nos é dado para representar ali. Qualquer tentativa de interação ou compreensão porá fim imediato ao silêncio e paz que advêm dele. Mesmo os pensamentos mais santos e puros devem ser renunciados... É um momento de renuncia, isso deve ser bem compreendido. Não é hora de luta ou argumentação, mas de prostração no vazio e no silêncio. Cessa a vontade, e já não se diz venha o teu reino, porque o reino de Deus já está agora, nesse momento, dinamizando vida dentro de nós.
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Para a alma assim em prostração e contemplação, o reino de Deus já veio, já está acontecendo. Nesse estado de contemplação e compenetração no silêncio da presença inefável do Eterno, realizam-se os versos do poeta místico Angelus Silesius: O tempo e o eterno se identificam se tu mesmo não fizeres distinção. Eu sou eterno, quando do tempo saio, fazendo entre mim e Deus a conjunção. O coração agora é puro porque o vazio da alma está cheio do silêncio da presença do Eterno.
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Então, eu compreendi o que significava aquele silêncio de Deus às minhas orações. Não era silêncio, era surdez minha. Era somente aparência de silêncio, ausência aparente de resposta. Eu falava da boca para fora e imaginava orar. Ensurdecido pelo vendaval das mil ansiedades, da fúria dos pensamentos e do rugir dos desejos descontrolado, tudo o mais, fora o rugir da tempestade que batia e minava meu ser, parecia ser silêncio. Contudo, agora livre das ansiedades, com a alma calma e serena, recolhido nas profundezas do meu coração, o silêncio se revela agora como suave voz de Deus sussurrada com doçura ao meu espírito, que se alegra e revigora.
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Não há palavras, nem som algum... Há apenas uma certeza absoluta de que Deus está ali... Não há revelações, nem visões, nem vozes, contudo ele está ali, no silêncio. Liberta da ansiedade, a alma ouve o silêncio de Deus, e o entende, e Deus ouve e se manifesta no silêncio da alma, que agora é tabula rasa, isto é, alma vazia de tudo, do bem e do mal, das ansiedades e dos desejos, vácuo absoluto, silêncio absoluto, entrega total a Deus, recipiente e morada do Eterno. Há apenas alma vazia e Deus que a preenche com o silêncio da sua presença inefável. Não há mais eu, mas eu nele, nem ele, mas ele em mim.
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E no silêncio da minha alma ouço o silêncio de Deus, e isso me basta para manter a minha fé e a minha integridade de cristão... Nada mais além desse silêncio reconfortante me é necessário, porque o silêncio dessa presença de Deus é resposta mais que suficiente às minhas orações. Trovoadas e relâmpagos não poderiam falar mais claramente à minha alma, nem confortá-la, que esse suave silêncio da presença Dele. É um saber que ele está ali, e isso basta.
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Porque é um silêncio que completa, que conforta e dissipa medos e ansiedades... Não ouço sua voz, sinto apenas esse silêncio com características de presença inefável... Então, de repente, vejo Deus. Não, isso não é heresia, vejo de fato Deus...
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Não o vejo face a face, como Moisés viu... Não vejo sua forma ou silueta, não vejo sua cor ou sua essência, não posso tocá-lo nem posso ser tocado literalmente por ele, nem sei se ele está à esquerda ou à direita, porque ele está em todo lugar, contudo, vejo-o no brilho dos meus olhos, que reage positivamente ao silêncio da sua presença. Vejo-o e sinto sua presença no revigorar dos meus passos, na alegria e paz que invade minha alma, no renascer da esperança e dos sonhos que haviam morrido... E minha alma que antes só fazia chorar agora, tocada pelo silêncio da presença Dele, fala como que jorrando água da vida...
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Vejo-o no brilho dos olhos do angustiando que ao ouvir essas palavras que me escapam da boca em torrentes de vida, alegra-se... E por fim, essa presença silenciosa torna-se a luz dos meus olhos, e tudo o mais onde eu posto os olhos se torna bom e sagrado, de modo que eu o vejo no azul do céu, que agora é mais azul, na face da mulher amada, que agora é mais linda que nunca, na flor que desabrocha, no canto do bem-te-vi... Vejo-o na grandeza e na pequenez de todas as coisas.
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Por fim, depois de um tempo perdido no êxtase desse estado de inefável graça, coloco a cabeça no travesseiro e durmo rapidamente...



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