10 de novembro de 2011

Olhos de Poeta...

Olhos de Poeta
(ou aprendendo a ver além das aparências)

Falemos alguma coisa sobre poetas. Ora, o que mais me encanta nos poetas é que eles descobriram um jeito diferente de ver o mundo ao seu redor. Eles enxergam as coisas de um ângulo diferente e inesperado. Possuem um modo inovador e surpreendente, impensado mesmo, de olhar as coisas que ao nosso olhar destreinado, parecem coisas banais. Encanta-me o modo como eles veem a magia oculta nas coisas que passam despercebidas ao olhar do homem comum. Melhor que qualquer um de nós, o poeta transita com liberdade pelas profundezas do mundo dos arquétipos, e suas ideias mais originais ele colhe direito na fonte perene do universo das imagens platônicas... Sua sensibilidade vai anos-luz adiante da sua razão.
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De modo que, a meu ver, poeta é todo aquele que, mais que observar as coisas de outros ângulos, as observa com outros olhos, os olhos do coração. Sabe aqueles mistérios que Shakespeare disse existir ocultos entre o céu e a terra? (Existem mais coisas entre o céu e a terra do que sonha a nossa vã filosofia). Pois bem, os poetas são, entre todos os homens, os que melhor vêem e sentem essas coisas misteriosas.
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São homens e mulheres que vivem com o espírito à flor da pele. Todo grande poeta, pelo menos os da minha lista, tem alguma coisa de místico, de modo que, a meu ver, há alguma coisa de quântico na poesia do olhar desses estranhos homens e mulheres... Eles não apenas falam à alma da gente, mais que isso eles a tocam, a alimentam, a consolam e não raro a curam de suas feridas existenciais, que são as feridas que a vida fez. A boa poesia, não alimento aqui a insensatez de que ela seja uma panacéia, é bom remédio preventivo e curativo da alma...
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Como os profetas, os grandes poetas parecem viver em outra dimensão do espírito. Uma vez conheci um desses homens, que em tudo passaria por um homem comum, mas seu olhar e suas palavras eram diferentes. Possuíam vida, carisma, fogo... Era um homem diferente, que com um simples olhar provocava riso e lágrimas na alma da gente. Era já idoso, tinha aspecto de profeta, mas era poeta. Seu olhar parecia ver para fora e para dentro dele, ao mesmo tempo. Ele possuía alguma coisa que em nós foi atrofiado pela incredulidade e pelo desuso, espírito. A vida que me vinha - vem - em fragmentos, nele parecia fluir em sua plenitude. Diante da originalidade da sua presença, a minha vida parecia uma vida inventada pelo meio que me abraçava e consumia. Foi então que eu descobri que eu ainda não era eu, eu era só qualquer coisa sem humanidade, um fragmento do meio onde eu existia.
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Que dizer então da poesia de Manoel de Barros? É preciso já ter vivido quase 100 anos para ter toda aquela simplicidade, leveza, elegância e transcendência. Leio, releio, torno a ler, e não me canso... Faz tempo que elegi Manoel de Barros um dos meus médicos da alma. Sua poesia é uma das dispensas de onde tiro parte do alimento da minha alma...
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A eternidade habita no coração desses homens e mulheres. Às vezes, como para os profetas e videntes, o complexo espaço-tempo-eternidade se funde, para eles, num bloco só, e eles parecem existir fora do tempo, dentro da eternidade, daí suas palavras não serem temporais, filhas de uma época com data de validade, como é boa parte da Filosofia, por exemplo, mas palavras eternas. A boa poesia carrega em si alguma coisa de eternidade. Dura para sempre. Como Nietzsche, todo bom poeta nasce póstumo. Enquanto o mundo for mundo, se lerá Homero, Dante, Horácio, Milton, Goethe, Virgílio...
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O místico Frithjof Schuon disse certa vez que “Não existe uma ciência da alma sem uma base metafísica e sem remédios espirituais à sua disposição.” Entre os medicamentos mais eficazes para a cura da alma está a poesia, porque a alma, assim como a boa poesia é atemporal. As coisas muito mundanas, muito complicadas e difíceis, muito temporais, tipo usa agora e acabou, empedram, atrofiam a alma e envelhecem o espírito da gente. Infelizmente um mundo de gente sequer sabe que possui um espírito, tão empedrado e atrofiado ele está. Estes - os que desconhecem a existência do próprio espírito -, são aqueles que têm olhos mais não vêem. No lugar do coração de pedra e do espírito cego, velho e atrofiado, precisamos urgente de um coração de carne, de um espírito novo e de olhos de criança inocente. Precisamos de olhos de poeta. Precisamos sonhar sonhos novos para podermos ter novas visões da realidade. Precisamos deixar nosso espírito encarnar em nossa própria carne, dominando-a, vencendo-a... Chega dessa visão curta, mesquinha e rasa do mundo. Precisamos de uma visão mais dimensional. Precisamos ver como os poetas vêem. Precisamos hoje mesmo deixar o sol nascer dentro da escuridão das nossas almas... Precisamos como que nascer de novo.
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Os poetas, esses criadores de pontes entre as coisas do espírito e as coisas da matéria, sentem a verdadeira realidade do mundo ao seu redor. E não apenas o mundo, mas também a alma, pois os são psicólogos por natureza. Reconhecidamente grande - imprescindível mesmo -, é a importância terapêutica da poesia, tanto para quem escreve quanto para quem lê.
Os bons psicólogos são incapazes de fazer boa psicologia sem citar os bons poetas. A poesia está na raiz da filosofia. No seu início a filosofia grega - pré-socrática - girava em torno das disputas entre acusadores e defensores do maior de todos os poetas gregos, Homero. A poesia nasce antes da Filosofia. E mais, poesias e mitologia se misturam.
O mais antigo escrito humano que se tem notícia – 5 ou 6 mil anos - é um poema épico – A Epopéia de Gilgamesh.
Que eu saiba, não há religião que não se valha dos poetas e da poesia para firmar suas verdades nos corações que nelas crêem. Uma religião sem poetas e música é uma aberração impensável. Só é verdadeiro sacerdote aquele que tiver olhos de poeta. Um sacerdote sem transcendência é um suplicio de se escutar, mais ainda de se crer.
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A poesia transpassa a Bíblia de capa a capa, e atinge seu auge no Livro dos Salmos. Também as escrituras indianas exalam poesia a cada página, de modo que aquele que se encantar com os salmos de Davi se encantará também com a beleza dos versos do Bagavad-gita e com a poesia do Mahâbhârata e do Râmâyana, duas obras máximas da poesia sânscrita. Mas os poetas místicos do Islã, os sufis, sãos os que mais me encantam. Faz tempo que fiz do cristão católico São João da Cruz, e do poeta místico, o sufi Jalaluddin Rumi, os meus consoladores e confortadores. Tanto a leitura meditativa da Noite escura da Alma, bem como a leitura do Masnavi, são raios de luz que iluminam a escuridão e ordenam o caos da minha alma nos seus dias de profundo desespero e solidão.
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E o que seria dos enamorados sem a poesia? Todo apaixonado é um poeta em potencial... Amor sem poesia ainda não é amor, é só qualquer coisa.
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E se alguém entre nós, já muito adulto, demasiado adulto, disser não gostar de poesia, se ainda conservar seus cadernos daquele tempo quando ensino fundamental ainda se chamava primeiro grau, é só retornar a eles e abri-los para ver ainda hoje, os já desbotados e esquecidos versos apaixonados que escreveu para a linda mocinha que sentava na cadeira ao lado, ou que estudava na sala ao lado...
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E se por acaso forçar um pouco mais a mente, há de se lembrar das inúmeras vezes que embalado por uma música romântica, sozinho no escuro do quarto, viajava pelo infinito, ele herói, ela princesa encantada de algum mundo ou reino mágico. E se for honesto consigo mesmo, e comparar suas memórias umas com as outras, verá que aquelas memórias das primeiras paixões estão entre as mais felizes da sua vida. Ah que saudade da poesia daquele tempo quando as coisas e os amores mais impossíveis eram possíveis na alma da gente! Quem foi que nos roubou aquele antigo e inato olhar de poeta? Quando foi que desaprendemos a ver?
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Porque para os poetas, grande é a diferença entre ver e olhar. “Ver” como diz Carlos Castaneda, no seu livro Uma Estranha Realidade, encerra um processo muito complexo, em virtude do qual um homem percebe a essência das coisas do mundo. “Olhar” refere-se a qualquer maneira comum em que estejamos acostumados e perceber o mundo. O prazer do poeta está em ver essa essência das coisas.
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Nosso olhar de poeta está tão atrofiado, melhor dizer, nosso coração, nossa alma, nosso espírito, está tão atrofiado pelo desuso e pelo abuso, que acredito que se, de repente, uma pessoa comum ganhasse olhos de poeta imediatamente pensaria ter enlouquecido.
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Rubem Alves, o homem dos gestos poéticos - tudo que ele escreve é maravilhoso. (Como não gostar dele?) Mas enfim, uma das suas crônicas que mais gosto, A Complicada Arte de Ver, onde ele, que entre outras coisas é psicanalista, fala de uma paciente que entrou, deitou-se no divã e disse: "Acho que estou ficando louca", me encanta. Em parte, foi lendo esta crônica que eu entendi que, ao contrário do que minha mãe e companhia diziam (dizem), eu não sou louco, só vejo o mundo de um modo diferente. Bem, talvez eu seja sim um pouco louco.
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Na seqüência do texto de Rubem Alves, a mulher, depois de dizer que a culinária era um dos seus maiores prazeres, pensa estar enlouquecendo quando, ao pegar uma cebola para cortar – coisa que já fizera sem qualquer percalço por inúmeras outras vezes – de repente, no primeiro corte que faz na cebola, teve um troço. Que loucura era aquela! Deus do céu! A cebola não era mais uma banal cebola. Houve ali uma epifania. A cebola mudou ou os olhos dela mudaram? O fato é que, com seus anéis magnificamente ajustados, todos refletindo uma luz que ela nunca havia notado antes, a cebola agora se lhe parecia aos olhos algo como “um vitral de catedral gótica.”
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Incrível isso, de coisa para comer a cebola se modificou em coisa para ser vista. De alimento para o corpo mudou-se em alimento para a alma. E a mulher diz: Percebi que nunca havia visto uma cebola. Deus meu! Ela cozinhava cebolas, chorava cortando cebolas, comia cebolas, e ficava com as mãos cheirando a cebola, e, no entanto, jamais havia visto a beleza quase que metafísica, transcendental mesmo, de uma cebola. Numa palavra: Ela olhava, mas não via.
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Um tema recorrente nos lábios de Cristo é o dito de que não basta ter olhos para ver, bem como não basta ter ouvidos para ouvir, e poderíamos acrescentar que não basta ter paladar para sentir o verdadeiro sabor das coisas, e muito menos olfato para sentir o verdadeiro perfume da vida. Nossos sentidos estão ofuscados por tantas coisas, e não raro ofuscado até mesmo pela razão, que de tão racionais ficamos cegos, surdo, e a vida nos parece um tanto quanto insossa. Mas o problema não está na vida, está em nós, afinal os olhos são a lâmpada do corpo, de modo que se os olhos forem bons tudo mais será bom.
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Como a paciente de Rubem Alves, somos todos nós, que não temos olhos de poetas (e nem palavras poéticas, e às vezes nem sequer gestos poéticos). Para a maioria de nós, uma árvore é só uma árvore, um rio, só um rio, uma mulher só uma mulher - às vezes menos que mulher, é objeto. Deus do céu! Isso assusta. Em que ponto lamentável da existencial chegamos... Que surdez! Que cegueira! Será que ainda há em nosso coração um lugarzinho tranqüilo que podemos chamar de nosso?
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Precisamos correr rápido ao lugar do princípio de todas as coisas e recomeçar a caminhada da vida, agora com outros olhos, olhos de poetas. Precisamos encontrar com urgência um lugar mágico, protegido e fértil, onde os sonhos se realizem... E se esse lugar não puder ser encontrado, precisamos inventá-lo.
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Passamos a vida olhando rápido demais, olhando de longe demais. Não vemos quase nada do que deveríamos ver... Perdemos o dom da transcendência. Alguém nos roubou o coração de poeta... Passamos correndo pela vida sem parar para ver a essência das coisas. Comemos, dormimos, respiramos, beijamos, amamos, e vivemos e morremos por hábito. Cada vez mais estamos sendo reduzidos a meras máquinas de trabalhar, comer, dormir e cagar.
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Existimos quase que totalmente inconsciente do mundo ao nosso redor e, o que é pior, inconscientes de nós mesmo. Damo-nos a qualquer um, por qualquer preço, e até por preço nenhum... Ah, se soubéssemos qual o nosso valor! Certamente que não nos venderíamos tão barato. Ah se soubéssemos qual é a nossa dignidade! Certamente que não desceríamos tão baixo. Mas se um dia – se tivermos sorte – nossos olhos abrirem para o encanto de uma cebola, que bem pode ser o vitral de uma catedral gótica, ou para o encanto das flores que para Gaston Bachelard eram verdadeiras chamas de fogo, então... Ah! Como nossa vida seria melhor se parássemos nossa correria para olhar a glória dos lírios do campo.
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Olhai os lírios do campo e observai as aves do céu! Desnecessário dizer de quem são estas palavras. Desnecessário citar capítulos e versículos. Olhai os lírios do campo é uma das frases mais lindas, mas profundas e marcantes de todos os tempos. Contudo, de todos os mandamentos de Cristo, este é um dos menos obedecidos. A poetisa Emily Dickinson disse certa vez que, olhai os lírios do campo tinha sido o único mandamento de Cristo que ela nunca havia desobedecido. Ela tinha olhos, e via - o que é infinitamente melhor que ter olhos e não ver.
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A mulher das cebolas viradas em vitrais góticos segue dizendo: E o pior é que o mesmo aconteceu quando cortei os tomates, os pimentões... “Agora, tudo o que vejo me causa espanto.”
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Eis a nossa maldição: Nada mais nos causa espanto. Não nos espantamos com o ladrão de rua, nem com o político corrupto, e se alguém nos pergunta alguma coisa vamos logo dizendo: É assim mesmo, sempre foi assim. Mas se um dia, porém nossos olhos se abrirem para a realidade das coisas ao nosso redor, e se, por obra e graça de Deus, ganharmos olhos de poetas, e se pudermos olhar com esses olhos novos, para um lírio... Mas não somente para os lírios, mas tambem para as pessoas ao nosso redor. Que veremos? Ah, nem te digo. A “loucura” parece tão grande que o melhor a fazer é só repetir as palavra daquele – Cristo – que primeiro ousou ser louco a ponto de dizer tal barbaridade. Ele diz: Considerai como crescem os lírios do campo: eles não trabalham, nem fiam. Eu, contudo, vos afirmo que nem Salomão, e, toda sua glória, se vestiu como qualquer deles. Então os lírios do campo são mais gloriosos que o poderoso, sábio, rico e mulherengo Salomão? Loucura isso? Que dizer então de Willian Blake que disse que Se as portas da percepção estivessem limpas, tudo se mostraria ao homem tal como é, infinito.
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Pobre de nós, homens cegos para a verdadeira realidade transcendental de todas as coisas, inclusive de nós mesmos. Nosso olhar comum, tão pequeno e míope, tão sobrecarregado de ansiedades, preocupações, ganância, inveja, ódios, medos e preconceitos, roubam e mutilam em nós, a visão da infinitude de todas as coisas. Mas para o poeta louco William Blake, o verdadeiro olhar – que é o olhar de poeta – é aquele que vê o mundo num grão de areia e que vê o céu em um campo florido, que guarda o infinito na palma da mão e sente a eternidade em uma hora de vida! Cristo, que certamente tinha olhos de poeta, ao olhar para o homem viu escondido embaixo da crosta das drogas, da humilhação da prostituição, da desonra da bebedeira, o verdadeiro valor do homem, e disse: Um homem, seja ele quem for, vale mais que o mundo inteiro. Porque se vender tão barato? Porque desistir tão fácil da vida... Afinal nosso valor como pessoa excede o valor do mundo inteiro. É tudo uma questão de saber ver o real valor das coisas.
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Felizmente o psicanalista daquela senhora era ninguém menos, ninguém mais que Rubem Alves, que segundo ele mesmo conheceu a poesia por volta dos quarenta anos de vida, e nunca mais foi o mesmo, enlouqueceu também. Fosse outro, ou seja, alguém para quem um lírio é só um lírio, um grão de areia só um grão de areia, uma árvore só uma árvore e uma cebola só alguma coisa de comer, e ela teria saído de lá com um encaminhamento direto para o psiquiatra, e este ao ouvir da boca da pobre mulher que uma cebola é tambem um vitral de uma catedral, balançaria a cabeça consternado, e ela sairia de lá com algumas receitas de medicamentos tarja preta, embaixo do braço, e, agüenta os efeitos colaterais depois. Sábio, ele procurou na estante as “Odes Elementales”, de Pablo Neruda e a mostrou à mulher. Porque Neruda tem também as suas experiências com as cebolas. Para ele a cebola era uma “Rosa de água com escamas de cristal”. A mulher agora estava curada. Fácil assim...
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A mulher tinha ganhado olhos de poeta. Alguma coisa nela havia mudado, e como resultado dessa mudança interior, ela aprendeu a ver as coisas como elas realmente são,  transcendentes, numinosas, epifanicas... Por tudo isso, necessitamos urgente aprender com os bons poetas, a ver o mundo com outros olhos, olhos de poeta
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Sobre a arte de ver, recomendo a leitura, além do texto aqui referido de Rubem Alves, também todos os livros de Carlos Castaneda, bem como As Portas da Percepção, de Aldous Huxley, além é claro, de muita poesia. É bom ler também A Chama de uma Vela, de Gaston Bachelard. E se sobrar tempo nada se perde dando uma olhada em A Filosofia Perene, de Aldous Huxley. Talvez assim, se dermos sorte, ganhemos alguma coisa dessa visão maravilhosa dos poetas, porque, apelando mais uma vez para William Blake, a verdade é que: "A árvore que o sábio vê não é a mesma árvore que o tolo vê", e isso também vale para todas as outras coisas, inclusive para as aves do céu, os lírios do campo e até mesmo para um simples grão de areia. Sobretudo vale para nós, porque os antigos teólogos quando falavam do homem, diziam que ele era imagem e semelhança de Deus... Para o bem da humanidade, as implicações práticas dessa maneira de ver o homem, sobretudo de ver a nós mesmos, são ilimitadas. É pagar para ver. Precisamos de um colírio que nos lave os olhos das mesmices do dia a dia...
V.B.Mello. (10/11/2011)