Deixai, ó vós que entrais, toda
esperança! (Inferno – Canto III)
Dante Alighieri
*
Com a alma pesada de
tanta treva, ambicionou sobremodo encontrar e possuir também uma luz interior,
para chamar de sua. Mas não conhecia a alquimia de transformar as trevas em
luz, nem a arte de transmutar o mal em bem. Eis então, que certo dia, por mero
acaso, passando por um caminho estreito, muito antigo e muito distante, ouviu
falar de tal homem jovem, que ensinava sobre o amor. Venceu a multidão que
rodeava o homem, e parou para ouvir. Mas o homem tinha uma aparência por demais
simples, o que o decepcionou. Forçou as vistas para ver melhor, e não viu
encanto algum. Só mais um louco lançando
palavras ao vento... Ele pensou. Mas a visão direta dos olhos do homem nos
seus olhos, se é que de fato era mesmo um homem, pois - agora ele via, ou
pensou ver – o tal homem tinha a face de um anjo e palavras divinas, que ele espalhava
como sementes de vida sobre a terra seca... Tal visão lhe causou uma espécie estranha
de desconforto. Imediatamente, sob o peso de alguma força inconsciente, ele
curvou a cabeça, e ouviu pensativamente cada palavra que o homem dizia, e no
fim, movido igualmente por uma força inconsciente, zombou de cada uma delas. Pois
o homem, isso lhe ficou muito claro, dizia coisas estranhas e sem sentido. Então,
não sem grande ira - que se apoderou de todo o seu ser -, se retirou do meio
daquele povo, a quem chamou de ingênuo. Contudo, para desgosto seu, as palavras
do belo homem enchiam a terra, enchiam o mar e enchiam o ar... De modo que era impossível
não ouvi-las. Furioso, ele fugiu para um abismo, e quando já se aproximava
novamente das fronteiras do seu deserto, exasperado, tapou os ouvidos, porque as
palavras do belo homem ainda ali lhe chegavam aos ouvidos. Se dentro ou fora da
alma, ele não sabia mais dizer, as palavras do belo homem estavam sempre lá, em
algum lugar dentro dele, que ele não sabia dizer que lugar era..., ecoado,
ecoado... Bem-aventurado os humildes de espírito... Bem-aventurado os que têm
fome e sede de justiça... Tomou de pedras e as atirou contra o belo homem,
escarrou e cuspiu para o lado, fez uma careta de nojo e desprezo, e mergulhou profundamente
no deserto; fechou a porta atrás de si, e a noite caiu outra vez sobre ele. Finalmente
as palavras do belo homem cessaram... Mas a treva que havia nele, cansada de
ser escuridão, queria cada vez mais, ser luz. Uma angústia sem igual fustigou-lhe
o corpo e a alma, e ele adoeceu de tanta treva. A ausência das palavras do belo
homem havia deixado um vazio incomensurável na alma dele... Desejou a morte,
mas a morte não veio. Ela nunca vem quando a gente quer. Sentindo-se
absurdamente desconfortável nas próprias trevas, ele bolou um plano infalível
para escapar do seu sentimento de abismo.
Roubaria a paz dos outros, assim - pensou -, teria alguma luz e alguma paz.
Com esse objetivo em mente, saiu do deserto e mergulhou na vida dos outros, e
por onde passava e encontrava alguém em paz, atormentava e destruía... Sua boca
proferia maldições e impropérios sem fim... As flores do caminho ele pisava. Aos
pássaros ele atirava pedras e prendia em gaiolas, os peixes ele prendia em aquários;
as mulheres, ele abusava, e aos velhos e crianças desrespeitava... O céu azul
ele amaldiçoava. Esmagar era sua palavra de ordem. Nada respeitava. Nada admirava.
E todo lugar aonde ele chegava, desmoronava. Na sua presença a luz se apagava e
guerras se travavam. Quando ele chegava a uma cidade, as pessoas diziam: Ai meu Deus! Quando ele partia as
pessoas diziam: Graças a Deus! E o tempo
passou... Pessoas – estranhas pessoas – começaram a segui-lo por todos os seus
caminhos... Quem o via assim, rodeado de tanta gente, facilmente poderia
incorrer no erro de pensar que ele tinha muitos amigos, mas não eram seus
amigos ou discípulos, aquelas pessoas estranhas... Eram seus cúmplices de
destruição da paz alheia, ladrões de luz. Ah, meu irmão! Você não pode imaginar
quanta luz eles roubaram, quanta paz eles destruíram! Todavia, a luz e a paz roubada,
assim que tomada pela força, esvaia-se no ar – estourava feito bolha de sabão
levada pelo vento -, de modo que eles, por mais paz que roubassem, não podiam
retê-la em si mesmos. E assim, quando mais luzes eles apagavam, mais em trevas
eles ficavam... (pois não sabiam que a luz alheia é também uma forma de iluminar
as próprias trevas.) Inconscientes da sua própria miséria, eles continuaram
apagando a luz alheia, onde quer que ela fosse encontrada. Nada lhes impunha limites.
Antinomistas por natureza, os valores morais e éticos nada significavam para
eles. Na vã esperança de que assim a sua luz seria acessa, eles pilhavam a paz
alheia sem se importar com quantas luzes apagavam em busca da própria luz, que
nunca se acendia. Em seus corações, as trevas e o mal fizeram uma aliança
eterna, fizeram juramentos e selaram o pacto amaldiçoando-se com mutuas
execrações, e por fim combinaram que, se necessário fosse, apagariam todas as
luzes do mundo. Já não eram mais homens, aqueles homens... Mas eis então, que
um dia, de inesperado, um fogo medonho se acendeu nas entranhas deles. Era um
fogo terrível. Um fogo que queimava e consumia a alma, mas que não a iluminava
quando a noite caía. Um fogo destituído de luz. Imediatamente uma fome insaciável,
antecedida de terrível crise de loucura e cegueira mútua, se apoderou deles, e
eles começaram a se devorar uns aos outros... Conta-se – oh, horror! – que antes
deles sumirem para sempre nas trevas que causaram, pois a treva os abraçou e os
levou para um lugar aonde luz alguma jamais chega, ouviu-se o silêncio da noite
ser quebrado por terríveis gritos e rangeres de dentes e sons de ossos sendo
partidos...
V.B.Mello.
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