8 de setembro de 2019

Leituras de Teologia - Herman Bavinck - Objeções às ideias inatas.

De tudo o que foi dito antes, a razão pela qual a teologia cristã rejeitou tão unanimemente a teoria das ideias inatas é clara: é o temor do racionalismo e do misticismo. Se os seres humanos, por ocasião do nascimento, fossem plenamente dotados com um conhecimento claro e distinto, ou de todas as ideias (Platão), ou de Deus (Descartes), ou do ser (Gioberti), eles se tomariam independentes do mundo. Eles seriam capazes de produzir conhecimento puro de dentro de sua própria mente e, assim, seriam autossuficientes. Eles poderiam abrir mão da revelação que Deus deu em sua Palavra. Eles encontrariam conhecimento perfeito de modo mais eficiente em sua própria mente do que na natureza ou na Escritura. Além disso, a teoria das ideias inatas cria um abismo intransponível entre mente e matéria, alma e corpo. O mundo visível, consequentemente, não seria mais uma criação e revelação de Deus, uma corporificação de pensamentos divinos. Dele, nenhuma verdade eterna ou conhecimento intelectual poderia ser deduzido. Os seres humanos só poderiam chegar a isso mediante a autorreflexão e as reminiscências, isolados do mundo e refugiados em si mesmos. 


Isso, de fato, descreve o perigo da teoria das ideias inatas. No neoplatonismo e, subsequentemente, na igreja cristã (especialmente a católica), o dualismo de Platão levou a um tipo de misticismo que, inicialmente, pelo menos, nos estágios primitivos da mediação, ainda usava a revelação de Deus na natureza e na Escritura, mas que, tendo alcançado o estágio mais elevado de contemplação, podia abrir mão de recursos externos e se contentar com o mundo interior, a luz espiritual, a visão de Deus e a comunhão com Deus nos recessos mais íntimos da alma. E o dualismo de Descartes, associado a essa teoria da ideia inata de Deus, novamente introduzida na filosofia moderna, levou primeiro Leibniz e Wolf, depois Kant, Fichte e Hegel ao racionalismo que constrói todo o universo de seres a partir do processo de pensamento imanente da mente humana. Ora, está claro como o dia que a Escritura não quer tomar parte nessa autarquia (autossuficiência) humana e nesse desprezo pelo corpo e pelo universo material. Ela ensina que os seres humanos são portadores da imagem de Deus na alma e no corpo e que, por meio de seu corpo, eles são semelhantes e estão conectados com todo o mundo visível. Mas esses vínculos não são correntes de escravos. Pelo contrário: o mundo no qual os seres humanos foram colocados não os leva a se afastarem de Deus, mas a se aproximarem dele. O mundo é uma criação de Deus, um espelho de suas perfeições, uma manifestação de suas deias. E, na esplêndida linguagem de Calvino, “não há uma só partícula no universo na qual não se possa discernir pelo menos algumas centelhas de sua glória”. Tendo a teologia cristã entendido isso, ela rejeitou unanimemente a teoria das ideias inatas. 

Somem-se a isso as objeções derivadas da psicologia e da história apresentadas contra essa teoria, entre outros, por Locke. O empirismo, em sua polêmica contra o misticismo e o racionalismo, defendeu uma verdade preciosa. Essas escolas de pensamento estavam bem intencionadas quando afirmaram que a essência ou ideia das coisas não podia ser entendida por meio da percepção dos sentidos, mas podia ser apreendida apenas em Deus (Malebranche), na alma, pelas reminiscências (Platão), ou pelo processo de pensamento, na mente humana (Descartes, Hegel). Deus, de fato, é a luz da alma humana. Em sua luz, vemos a luz. O Logos ilumina cada pessoa que vem ao mundo. Apesar disso, é verdade que, sobre a terra, não vemos face a face: andamos pela fé, vemos como por um espelho, vagamente. Chegamos ao conhecimento de Deus somente pela contemplação da revelação de Deus na natureza e na Escritura (Rm 1.19; ICo 13.12; 2Co 3.18). Na terra não podemos obter um conhecimento direto, imediato de Deus e de seus pensamentos, apenas um conhecimento mediado “através de um espelho”. Os sentimentos dos místicos, dos racionalistas e dos ontologistas, portanto, não são teístas, mas panteístas. Eles confundem a luz da razão com a luz de Deus, as verdades universais em nós com as ideias na mente de Deus, nosso “logos” com o “Logos de Deus”, a ordem do ser com a ordem de nosso conhecimento. Na ordem do ser, Deus é, indubitavelmente, o primeiro. Ele é o Criador e o Sustentador de todas as coisas. Seu pensamento e seu conhecimento também são antecedentes a toda a existência de coisas. Não é o caso de que Deus conhece o mundo porque e depois que ele existe, mas o mundo existe porque Deus o pensou e o chamou à existência por um ato de sua vontade. 

Isso não significa que nosso conhecimento segue o mesmo curso e tem de ser idêntico à ordem do ser, e, portanto, que temos, antes de tudo, de conhecer a Deus a partir de sua ideia dentro de nós para então somente conhecermos o mundo. Somos criaturas e existimos no nível das criaturas. Podemos conhecer as coisas porque elas existem e depois que elas vêm à existência e, em nossa percepção e em nosso pensamento, partimos do visível para o invisível, do mundo para Deus. Considerar o ontologismo forte contra o idealismo, que considera a realidade objetiva das coisas impossível de existir ou de ser conhecida, é entregar-se a uma ilusão. O próprio ontologismo, sobre/de sua posição, só pode manter a objetividade dessa realidade igualando a ideia de Deus dentro de nós com o ser de Deus, o logos de Deus dentro de nós com o Logos de Deus, e, assim, cai no erro do panteísmo. E, contra essa posição, a teologia cristã apresentou a doutrina da Escritura, de modo que, como não podemos conhecer o ser de Deus como tal, todo o nosso conhecimento de Deus é obtido indiretamente e tem caráter analógico. De fato, ninguém chega ao conhecimento dos princípios fundamentais ou à ideia de Deus à parte do universo. Um bebê, nascido sem consciência, gradualmente recebe uma grande quantidade de impressões e ideias oriundas do ambiente no qual nasceu. Com os primeiros seres humanos isso pode, pela natureza do caso, ter sido bem diferente. Mas todos os que nasceram depois foram levados a um conhecimento consciente e claro das coisas visíveis e invisíveis por seus pais e pelo ambiente no qual cresceram, não por iniciativa e reflexão pessoal. Por essa razão, não há conhecimento do mundo invisível a não ser por meio dos símbolos daquilo que é visível. Aqueles que não possuem um dos sentidos não têm ideia dos fenômenos que correspondem a esse órgão da percepção dos sentidos. Uma pessoa cega não sabe o que é a luz e, portanto, não sabe o que significa dizer que Deus é luz, a não ser por negação e contraste. 

Isso também explica o potencial para a divergência entre pessoas e povos em questões de justiça e de moralidade, religião e arte. Isso seria inexplicável se as ideias, como tais, fossem inatas e fossem implantadas diretamente em nossa mente pelo próprio Deus. Percebemos que, embora todas as pessoas tenham capacidade de falar, elas falam em línguas muito diferentes; que, embora todos tenham uma ideia de Deus, eles vestem essa ideia de uma ampla variedade de representações; que há pessoas que dizem em seu coração que não há Deus; que, embora a diferença entre o bem e o mal seja conhecida por todos, o conteúdo dessas duas categorias é definido de formas muito divergentes; que as opiniões humanas sobre certo e errado, beleza e feiura, diferem radicalmente. Em uma palavra, não há uma só verdade ética que seja reconhecida “em todo lugar, sempre e por todos”. Estritamente falando, a teologia natural nunca existiu mais do que os “direitos naturais” e a “moralidade natural”. 

Dogmática Reformada - (Parte 1 - O conhecimento de Deus) VOLUME 2: DEUS E A CRIAÇÃO - Herman Bavinck (1854-1921). Editora Cultura Cristã. 1ª edição - 2012

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