6 de setembro de 2019

Leituras de Teologia - João Calvino - O conhecimento de Deus e o de nós mesmos são realidades inseparáveis.

1 - Quase toda a suma de nossa sabedoria, que deve ser considerada a sabedoria verdadeira e sólida, compõe-se de duas partes: o conhecimento de Deus e o conhecimento de nós mesmos. Como são unidas entre si por muitos laços, não é fácil discernir qual precede e gera a outra. Pois, em primeiro lugar, ninguém pode olhar para si sem que volte imediatamente seus sentidos para Deus, no qual vive e se move, porque não há muita dúvida acerca de que não provenham de nós as qualidades pelas quais nos sobressaímos. Pelo contrário, é certo que não sejamos senão a subsistência no Deus uno. Ademais, por esses bens, que gota a gota caem do céu sobre nós, somos conduzidos como que de um regato para a fonte. Da perspectiva de nossa miséria, mostra-se melhor aquela infinidade de bens que residem em Deus. Especialmente essa ruína miserável em que nos lançou o erro do primeiro homem obriga-nos a olhar para cima, não só para que, em jejum e famintos, busquemos o que nos falta, mas também para, despertados pelo medo, aprendermos a humildade. Pois, como se encontra no homem todo um mundo de misérias, desde que fomos despojados do ornamento divino, uma nudez vergonhosa revelou-nos uma grande quantidade de opróbrios: é necessário que a consciência de cada um seja tocada pela própria infelicidade para que chegue ao menos a algum conhecimento de Deus. Assim, do sentimento de ignorância, vaidade, indigência, enfermidade, enfim, de depravação e da própria corrupção, reconhecemos que não está em outro lugar, senão em Deus, a verdadeira luz da sabedoria, a sólida virtude, a perfeita confluência de todos os bens, a pureza da justiça, a tal ponto que somos estimulados por nossos males a considerar os bens divinos. E não podemos aspirar seriamente a isso antes que comecemos a nos desagradar de nós mesmos. Com efeito, que homem não descansa satisfeito em si mesmo? Quem não repousa enquanto é desconhecido para si, isto é, enquanto contente com seus dons e ignorante ou esquecido de sua miséria? Por isso, o reconhecimento de si não apenas instiga qualquer um a buscar a Deus, mas ainda como que o conduz pela mão para reencontrá-lo. 

5 de setembro de 2019

Sobre a necessidade de orar sem cessar

Paulo diz que orar sem cessar (1 Tessalonicenses 5:17) é um dever primordial de todo cristão. Com efeito, sem oração não há alegria, não há perdão, não há autoconhecimento, não há ação de graças, não há consolação, não há nada. Tudo que somos, o tempo todo, depende das orações que fazemos. É por meio da oração, que a nossa fé vence o mundo. A oração, se podemos dizer assim, é a prova da saúde da nossa fé. Por trás de todas as realizações da fé encontra-se uma vida dedicada à oração. Por sua vez, todo fracasso da vida de fé, é, antes de tudo, fracasso da vida de oração. 

Tudo que fazemos na vida, deve começar, continuar e terminar com oração. Através da oração recebemos força, coragem e discernimento para seguirmos em frente. A verdade é que não precisaríamos orar sem cessar, se a nossa vida neste mundo estivesse garantida. 

Todavia, ainda que rica e abastada de tudo, a vida não vem com selo de garantia. Estamos sujeitos a todo tipo de provação. De uma hora para outra, nossos ídolos de confiança podem desmoronar sem aviso. É só olhar ao redor, tudo que vive, vive sob ameaça de morte. 

Com efeito, não temos como fugir dos imprevistos da vida, que são muitos. A vida não tem selo de imunidade. Sob o sol, estamos sujeito a tudo. Todo pode nos acontecer. Qualquer hora, sem aviso, pode ser tempo de morrer. A mesma desgraça que acontece ao nosso vizinho, amanhã ou depois de amanhã, pode acontecer com nós. Ninguém está livre de tragédias. O que vale para Jó, vale para nós também.

De uma hora para outra, sem aviso, enquanto dormimos, a terra treme um minuto, ou menos, e perdemos tudo, se é que ainda nos resta alguma coisa para perder. Ninguém está livre de acidentes. O pior pode acontecer a qualquer momento, a qualquer um, e, não se engane confiando na força do seu braço, ninguém se encontra completamente preparado para o pior. 

Quando a terra treme e o mar brame, nossas pernas - que julgávamos tão fortes - também tremem. Isso não é pessimismo. Olhe ao redor… Ouviu os rumores? Guerras e rumores de guerras? Não adianta chorar, nem correr para algum tipo – ou para todos os tipos – de droga. Sozinhos num mundo de cardos e abrolhos, essa é a nossa realidade, a nossa sina enquanto viventes deste mundo instável. 

Então, de uma vez por todas, note bem. Enquanto vivermos neste mundo, tentações, necessidades, aflições e dores de todo tipo, jamais cessarão de nos provocar e acossar, e, fato, porque não damos conta, por nossa própria força, de resolver e superar tudo de ruim que nos acontece, não temos outro remédio, senão recorrer à oração. Sim, para nossa vida não cessar, precisamos orar sem cessar. Amém? 

Com efeito, oramos sem cessar, porque reconhecemos que as dores do mundo são maiores do que nossas forças. Mais uma vez, oramos sem cessar, porque sem Deus, pobre de nós, nada podemos fazer. Sim, é verdade! Oramos sem cessar, porque, das duas, uma, ou Deus nos socorre, ou fazemos nas calças. 

Ora, aqui é preciso um pouco de humildade, porque só os humildes de Deus - acredite - oram sem cessar. Os orgulhosos não oram hora nenhuma. Por isso, quando a terra treme, não há esperança para eles. Para os orgulhosos, em qualquer tempo ou lugar, a força do próprio braço é a última ilusão, um tipo de ídolo ou deus interior, que eles adoram. Nós, porém, confiamos no nosso Deus. 

Sim, só ora sem cessar, quem, sem cessar, sente na própria carne, que precisa desesperadamente do socorro da graça de Deus. Só ora sem cessar, quem sente a incessante ameaça do leão que ruge ao derredor, procurando alguém para devorar. 

A consciência de que somos pecadores, pobres, nus, miseráveis, famintos e carentes da graça de Deus, como o chicote no lombo do burro, é, entre tantos outros motivos, o que nos faz pular e nos impele a orar sem cessar. Quem não tem essa consciência, não sente a mesma necessidade de oração que nós, pobres pecadores, sentimos. 

Como poderia se sentir estimulado a orar sem cessar, quem não tem a mínima consciência da própria miséria existencial? Como poderia ser levado a orar sem cessar, quem - tolamente - se acha completamente seguro no mundo? Quem, diga-me, poderia sentir-se obrigado a orar sem cessar, se, como um narcisista que se sente acima do bem e do mal, que todo dia, o dia todo, sem cessar, se olha e se encanta com o seu reflexo vazio, refletido no espelho enganoso da própria consciência cauterizada de tanto pecado, e que diz para si mesmo, como em Apocalipse 3:17, todo vaidoso e orgulhoso de si: Sou rico, estou bem de vida e não preciso de nada. Mas você não sabe que é infeliz, sim, miserável, pobre, cego e nu? 

Não, quem não se enxerga à luz da verdade de Deus, não vê motivo algum para orar sem cessar. Só quem vive consciente da própria condição caída do mundo, de si mesmo e de tudo, sente e sabe que precisa orar sem cessar, para não ser destruído espiritualmente, para não perder a alma, para não se perder nos labirintos da vida, arrastado pelos pecados que impera no meio das multidões do mundo. 

Sim, com efeito, oramos sem cessar, porque não vivemos a intervalos. Nossa vida, com todas as suas necessidades, tentações, fragilidades e tribulações, não cessa para descansamos. Oramos sem cessar porque, sem cessar, precisamos da graça de Deus. Amém? 
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