12 de julho de 2017

Viver é interpretar e se reinterpretar...

Como quem percorre uma estrada estreita
Eu percorro os caminhos da vida
Demoro-me em cada passagem
Recebo tudo com alegria
Ouço o canto dos pássaros
Respiro cada lufada de ar
Decifro os silêncios da natureza
A minha carne se renova
Quem me vê de longe
Me julga feliz...


Todavia, dentro do peito
Nas profundezas da alma
Onde ninguém vê ou sabe
Onde o dia amanhece
Quando a noite escurece
Interpreto cada passagem
Examino cicatrizes antigas
Cruzo velhas pontes
Contemplo antigos céus de escuridão
E enfrento velhos demônios


Dos antigos sonhos mortos
Ainda levo feridas e dores
Mil vezes - atravesso 
Como se fosse sempre 
A primeira e única vez
A mesma noite de escuridão
Cem vezes - eu desço 
Até o abismo da origem
De todos os medos e traumas
Toda noite, dormindo ou acordado
Ouço os mesmos gritos e os mesmos choros


No meio da noite profunda
Eu sonho com uma criança de pés descalços
E olhos fundos de medo e fome
Um cãozinho assustado
Amestrado pela dor
Tangido pela fome
Um vermezinho sem pai
Pairando acima de um abismo
Equilibrando-se numa corda bamba
Pobre criança, nem nasceu ainda
E já enfrenta mares e tormentas
Quanto tempo ainda, até ela cair?


As dores e as alegrias do passado
Me chegam em torrentes sem fim
Redemoinhos tomam a minha alma
O eterno retorno reinicia... relembro cada momento
Olho para o céu, que me parece distante
Ensaio uma ou outra oração
E essa é toda a minha fé
Não finjo espiritualidade
A minha espiritualidade é amar a vida
É abraçar o meu destino e segui-lo até o fim
Mesmo que no fim, não haja nada
Sim, a minha espiritualidade é pagar para ver...


Contemplo-me no espelho da consciência
Vejo uma sombra que ri e debocha
Se alguém me visse assim... cansado
Pensaria que sou um debochado
E recomendaria com insistência
Que eu experimentasse
Outra versão de mim mesmo


Todavia, eu, de mim mesmo
Não busco outras versões
Se te custa crer, não descreia
O chão é escorregadio
Mas eu estou satisfeito
Com o que eu me tornei
Quero ver aonde isso vai dar
Não quero ser outra coisa
Já quis, mas hoje não quero mais
Depois de uma vida completamente vivida
Não vale a pena querer viver de novo
Depois de percorrer a metade do caminho
Não vale a pena parar e recomeçar
Quem muito insiste em recomeçar
Se ilude com movimento pendular
Mas na verdade, não sai do lugar 


Boa ou má, na vida, o que vale a pena mesmo, é seguir em frente
Nada é novo no mundo, nem mesmo para quem vive mil vidas
Novas tecnologias para mais do mesmo... eis o progresso
Virtual ou real, não importa... O mundo, em qualquer época
Homens, árvores, rios e animais... tudo é muito igual


Olho nos olhos a maldade
Confronto a escuridão
E invento elos perdidos
A vida é um ato de criatividade


Com falsas memórias
Preencho as lacunas da dor
E dou um sentido
Ainda que ilusório
Ainda que obscuro
Ainda que temporário
Para as velhas feridas
Da minha história


Reescrevo o que foi rasurado
Revivo o que não foi vivido
Reinterpreto tudo de novo
Uma, duas, três... mil vezes
Viver é um eterno exercício de hermenêutica
Viver é interpretar e se reinterpretar
Até encontrar a interpretação certa
E depois começar tudo de novo...


O que é esse mundo perante a eternidade?
Limpo o chão, varro a casa 
Nada me humilha mais
Muitas humilhações prepararam a alma
Para enfrenar monstros e tempestades
Um leão ruge ao derredor?
Pois que morra de urrar


Mais um dia, mais uma noite
Ainda vivo? Sim, ainda estou por aqui...
Mas o tempo passa sem parecer que passa
E os tempos se revezam e matar e fazer chorar
Todo dia, sem cessar, a mesma sina recomeça tudo de novo


Ser forte e corajoso, eis a palavra de ordem
Muita gente boa já perdeu a vida
Por levar esse adagio popular a sério
Mais vale um corajoso morto
Do que um covarde vivo
Eis a filosofia do herói
Acredito nisso... Sim, pasmem!
Acredito nisso, para valer
Só de pensar em viver como um covarde
O meu estômago embrulha e as minhas pernas tremem
Mesmo assim, não falta quem me veja como um covarde...


Que me importa... Desembaraço o coração
Sonho dias de uma nova vida, que nunca vem
Esperar pela chegada involuntária de dias melhores
É como esperar pela volta de quem já morreu
Iludo-me... Sim, a vida seria impossível sem alguma ilusão
Talvez eu seja mesmo um covarde
Mas um covarde que olha qualquer escuridão nos olhos
Engano-me forjando novos horizontes
Planto jardins... Quixotescamente, luto com meus monstros
Brinco de ser outro, mas na alma, onde eu sou e vivo
Nunca mudei... Sou o que nasci para ser


Estremeço, grito e choro
No chão trêmulo desse mundo injusto
Há guerras demais / infelicidades demais
Loucura demais / violência demais
Pobreza demais / doença demais
Cobiça demais / morte demais
É preciso não ter alma e ser egoísta demais
Para bater no peito e se dizer absurdamente feliz
Grande é a minha fome de justiça
Terrível é a minha sede de liberdade


Bêbado de humilhação, caminho, tropeço, levanto, torno cair
Roubado na vontade, pisoteado nos sonhos
Nem sempre faço o que quero fazer
Mas isso é assim com todo mundo
Só os tolos pensam – e acreditam
Que são completamente livres
Nesse mundo, do berço ao túmulo
Existe sempre alguma coisa maior do que nós
Que nos arrasta contra a nossa vontade
E a morte sempre avisa e diz...
Estou aqui... Amanhã te levarei


Algo em mim... que força medonha
Quer ir além da mera justiça
Algo em mim, esse eu desconhecido
Todavia pressentido através das frestas da alma
E visto em vislumbres oníricos no meio da madrugada
Essa sombra que vem das profundezas de mim mesmo
E que me pega sempre despreparado e desprevenido
Esse carrasco implacável dos sonhos não realizados
Esse vento e escória de antigas amarguras
Fantasmas projetados pelo inconsciente
Um exército deles... Armam-se para a guerra derradeira
Sim, sem saber, ou fingindo não saber, ou não querendo saber
É contra nós mesmos, contra a nossa alma, que fazemos guerra


É contra nós... Sem perceber?
Que entramos no campo de batalha
E o primeiro e o último golpe
Que marca a nossa derrota na vida
Nós mesmos desferimos contra a nossa alma


Gostamos de camuflar as coisas
Gostamos de arrumar culpados
Fingimos que nos amamos
Mas no fundo desse sentimento fingido
O desprezo permanece... Oculto e em silêncio
Realizando a sua obra de destruição
Se escondendo sempre atrás
De alguma maquiagem de amor-próprio
Como quem se esconde atrás de um bode expiatório
Permanecemos inimigos de nós mesmos
Ave de rapina que devora a nossa própria vida


O coração pulsa e anseia
Sonha pesadelos e pede ao céu
Uma mesa preparada
Na presença dos seus inimigos
Sem saber que ele mesmo é o inimigo


Mas a eternidade pede e exige perdão
Perdão até setenta vezes sete
Sim, perdoa a ti mesmo, miserável
Não uma, não duas
Porque os seus pecados são muitos
Perdoa-te até setenta vezes sete


Oh, horror... Pobre miserável
Onde está o seu Deus agora?
Numa única noite, vazia e insone
Mil orações foram elevadas ao céu
Que previsivelmente - continua em silêncio...
Acordo... O sol bate na janela... a chuva parou
A vida, sempre ela, chama... Sigo o meu caminho
O céu continua me olhando e me acompanhando...
_VBMello

18 de setembro de 2016

Bolha de sabão...

Sob o céu de uma noite fria e escura
Marchando por caminhos impossíveis
Entre cardos e abrolhos
Abismos e montanhas
Grudento de suor e sangue
Sem parecer nem formosura
Esgotado pelas lidas da vida
Repleto de fragilidades
O meu mundo vagueia 
Como uma bolha de sabão

A vida desse meu mundo

A sua beleza
A sua graça 
E a sua motivação 
Vem da força da inspiração
Quando o coração é tocado
Pela epifania das coisas
Que vem do alto...


Para ganhá-lo e amá-lo
Não é preciso rastejar
Nem é preciso perder a alma
O brilho dos olhos, a dignidade
Ou o espírito de poesia

Basta um pouco de fé
Um pouco de esperança
Muita luta, lágrima e amor

É um mundo simples e humilde
Animado por sonhos 
Igualmente simples e humildes...

Para criá-lo e amadurecê-lo
Não é preciso ser um deus 
Basta ser um homem de coração sincero
Comprometido com a verdade
Amante da justiça e amigo da humildade

Basta prendê-lo na imaginação
Basta não trair as prioridades do coração
Basta não retroceder diante da aflição
Basta não ter medo de escuridão
Nem perder a coragem nos dias de solidão
E ele será eterno, criativo e vivo
Enquanto durar a motivação

Todavia, é preciso ter cuidado
As suas fronteiras não discernem bem
O céu do inferno,nem a luz da escuridão...

_VBMello








13 de setembro de 2016

Renascido...

Nos antigos dias de sombra e morte
Perdido na noite escura
Quando a minha mãe
Me virava a face
E os meus irmãos todos
Corriam da minha presença

Sem ter a quem me apegar
Nem onde me esconder
Do leão que me perseguia

Fiz da luz das estrelas
A luz dos meus olhos
Fiz do bramir das ondas do mar
O bramir do sangue 
Correndo em minhas veias

Fiz do som do vento 
O som da minha respiração
E das asas dos pássaros
Eu fiz a minha liberdade

Das palavras de Cristo
Eu fiz pão, vinho e mel

E na solidão e na dor
A minha alma se fartou de luz
E o meu coração conheceu a fé
E os meus lábios beberam e verteram
A graça e a suavidade da sabedoria

No chão duro da minha existência
Uma nascente brotou
O céu clareou
A tempestade passou
Um jardim floresceu

Um pássaro cantou... 
E no amanhecer de mais um dia
Eu, pobre miserável, que há muito tempo 
Estava triste e morto, renasci...
_VBMello

30 de agosto de 2016

Angústia...

Não é somente decepção, esse sofrimento
Que me corrói os ossos e arrasa o meu coração
É mais uma dor de angústia do que dor de decepção
É a dor de um pássaro velho e doente, preso numa gaiola
A minha respiração é como o lamento de um cão amarrado
Quem a pode suportar? Quem pode me suportar?
Já não suporto mais nada, tornei-me fraco e cansado
Para suportar a infinita dor dos outros
Ao doente, viro a cara... lamento a fraqueza do fraco
Como se fosse – e é – a minha própria fraqueza
A leveza da minha alma, como uma flor que brota da escuridão
Nasce de pesos insuportáveis, que ninguém vê, nem imagina
Já não ouso olhar-me, no espelho... não há mais nada para ver
Daquilo que um dia, eu fui... daquela velha alegria
Resta tão pouco... Estou tão vazio e seco de sorrisos
Das antigas lembranças, não faço caso
Do futuro, não faço caso... da vida, desdenho
Da morte, não tenho medo...
Identifico-me com o nada
Cortantes como cacos de vidros
As palavras me transpassam
Como alguém diante da morte
Contemplo os abismos da minha existência
Que dia é hoje? Que mês? Não quero saber
Em dias assim, a minha alma envelhece mil anos
Vago pelas sarjetas de mim mesmo
O pior de mim, aflora... Não me reconheço
Perco o ritmo das palavras
Me afogo nas profundezas da minha alma
A solidão é tudo que há, absoluta, profunda, silenciosa, mortal
Quem sou que? Que ventre doente, me pariu? Grito...
Quem me amaldiçoou, ainda no berço?
Quem me roubou a sanidade?
E Deus, onde será que está? Em mim? Aqui? Onde?
Sou, nessa casa, nesse mundo, nessa vida, nesse instante
Um cão perdido, um pássaro sem céu, um peixe fora d’água
Um homem revoltado, um coração amargurado...
Há um verme oculto sob o brilho dos meus olhos
Uma raiva, uma ira, uma fera que grita declarações de guerra
Um vulcão prestes a entrar em erupção...
Erupção contida por uma única certeza
Mesmo nesse vale de sombra e morte, tudo passa
E não há escuridão, nem coisa alguma, que dure para sempre
Hoje, as trevas... Amanhã, a luz
Hoje, as lágrimas... Amanhã, a alegria...
_VBMello