É estranho como, às
vezes, as coisas mais estranhas acontecem com a gente de modo tão natural que a
gente só percebe a estranheza delas muito tempo depois de acontecidas... Por
esses dias fui surpreendido por um desses discernimentos atrasados da realidade.
Sem que eu desse por mim, minha alma estava sendo lentamente envolvida – quase escrevi
devorada - por um simulacro da realidade. Um arremedo de paixão, dessas
absurdas mesmo - dessas de fazer rir, ou apavorar, qualquer pessoa minimamente
sensata -, pouco a pouco foi se instalando perigosamente em meu coração,
ocupando os espaços vazios - que são muitos – sabotando a realidade e
tornando-se o núcleo psicológico em torno do qual - como um ponto de gravidade
que atrai tudo para si – foram se agrupando outras tantas ilusões, surgidas não
sei de que abismos do meu inconsciente, com o único objetivo nefasto de provar
a mim mesmo, que ela - a ilusão -, era a minha única e verdadeira realidade confiável.
O fato - lamentável fato – é que, quando dei por mim, já estava emaranhado
nessa ilusão até os ossos. Não, não era ruim... Tinha gosto bom, mas é claro,
não era gosto de coisa natural, embora parecesse... Mas, que eu me lembre, na época
do ocorrido, jamais parei sequer um minuto para pensar nisso, tão envolvido
estava. Mas, que fique dito, era bom... Ela, claro - desnecessário dizer – era linda...
Deve ter sido por isso que eu perdi o chão... Por qual outro motivo afinal eu
perderia o chão? Que eu me recorde, não havia mais nada de encantador nela,
além da beleza. Sim, ela era - do começo ao fim - somente beleza... Ah, sim... Agora
me recordo... Havia também na beleza dela, algo de primitivo, rústico, arquetípico,
exótico mesmo, e isso, é fora de qualquer dúvida, conta muito na hora da gente “decidir” se deixar levar pelos mistérios da beleza alheia... Porque nela,
creia-me, é certo que o que me levou às fronteiras da loucura foi apenas a
beleza, que fique dito, e nada mais... Ou, ou... Mas enfim, hoje, quando penso
nela, o que não é raro, uma associação imediata com um anjo caído se dá em
minha mente... Por certo que ela possuía a beleza de um anjo... Mas é fato que
não era um anjo, nem caído, nem em pé... Era somente uma dessas pessoas difíceis
de explicar, e lidar... Mas era linda... Ou pelo menos na época me pareceu ser,
mas posso estar - e é quase certo que estou - enganado sobre isso também. Mas
não convém julgar o passado pela luz do agora, até porque toda luz de
julgamento é quase sempre fosca, se não sombria... Fica, pois, dito, que ela
era linda... E, claro, beleza é tudo quando se trata de iludir e se deixar
iludir... Fiquei deslumbrado. Durante muito tempo pensei estar a sonhar... E
não estava? Alguma coisa em mim insiste em dizer que sim, embora eu não
concorde... Mas eis então que - coisa estranha - de repente acordei, e ficou em
mim a certeza de que tudo não passou de um horrível pesadelo... Um gosto ruim
que, evidente, não chega para me levar à náusea, ainda permanece em minha
boca... Confesso que é estranho acordar assim, abruptamente no meio da
realidade... A gente fica como que possuído por um desesperador sentimento de
solidão e desamparo. Mas já foi dito que o ser humano é ser que se acostuma com
tudo. Ora, se pode se acostumar com a ilusão - e com a desilusão (é só olhar
para o lado para ver isso), pode também se acostumar com a dor da realidade,
acho... Se assim for – porque se não for... -, talvez eu, qualquer dia, acabe
também me acostumando com a realidade, talvez até encontre nela alguma poesia,
alguma magia, alguma epifania... Oh, meu Deus! Vê que já estou a sonhar
novamente? De fato me pergunto se estou acordado... Não sei dizer com
certeza... Agora vejo que a diferença entre o sonho e o pesadelo está em algo
muito mais profundo que simplesmente acordar... Ou que acordar é algo um pouco
mais complicado e difícil que apenas abrir os olhos de manhã e se levantar,
lavar o rosto, tomar café e sair para a lida diária... Mas afinal, o que me
resta ainda fazer para escapar desse pesadelo, que, enquanto escrevo isso,
sorrateiramente começa novamente a se insinuar ao meu coração como um
maravilhoso sonho, mas que na verdade eu bem sei, não passa de um horrível pesadelo?
V.B.Mello.
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