16 de outubro de 2019

“O profeta”

Num ermo, eu de âmago sedento,
Já me arrastava e, frente a mim,
Surgiu com seis asas ao vento,
Na encruzilhada, um serafim;
Ele me abriu, com dedos vagos
Qual sono, os olhos que, pressagos,
Tudo abarcaram com presteza
Que nem olhar de águia surpresa;
Ele tocou-me cada ouvido
E ambos se encheram de alarido:
Ouvi mover-se o firmamento,
Anjos cruzando o céu, rasteiras
Criaturas sob o mar e o lento
Crescer, no vale, das videiras.
Junto a meus lábios rasgou minha
Língua arrogante, que não tinha,
Salvo enganar, qualquer intuito
Da boca fria onde, depois,
Com mão sangrenta ele me pôs
Um aguilhão de ofídio arguto.
Vibrando o gládio com porfia,
Tirou-me o coração do peito
E colocou carvão que ardia
Dentro do meu tórax desfeito.
Jazendo eu hirto no deserto,
O Senhor disse-me: “Olho aberto,
De pé, profeta, e com teu verbo,
Cruzando as terras, os oceanos,
Cheio do meu afã soberbo,
Inflama os corações humanos!”.

*
Aleksandr S. Púchkin, “O profeta”. Tradução para o português de Boris Schnaiderman e Nelson Ascher. In: A dama de espadas: Prosa e poemas. São Paulo: Editora 34, 1999. Citado em "Dostoiévski: um escritor em seu tempo", de Joseph Frank. [Companhia das Letras]

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