16 de novembro de 2018

Cântico dos derrotados

Dentro e fora da alma
Derrotado, desesperado
Como alguém que persegue
Um sonho impossível
Fugindo de um cão raivoso
Caindo na boca do abismo
Mergulhando na escuridão
Da própria consciência
Após um rastro de fogo
E uma ferida na alma
Sob o arremesso de dardos inflamados
Arrependido e amaldiçoado. perdido
Antes do dilúvio, depois do dilúvio
Tarde demais... Não importa
Longe de Deus, colhe sempre
A mesma sina, a mesma derrota
A mesma revolta, a mesma queda


Filho pródigo
Pobre miserável
Sonhador incansável
Superestimou o poder da felicidade
Subestimou a maldade do mundo
Cheio de dinheiro no bolso
Cheio de sonhos na alma
Descobriu tarde demais
A preço de alma 
Que nem tudo
Quase nada
Pode ser comprado
No fim, previsivelmente
Perdeu tudo, perdeu a fé
Queria ir além, mas ficou aquém
Pobre miserável... 


Que sorte, que destino!
Um menino tolo
Podre de mimado
Longe de casa, na sarjeta
Comendo comida de porco
Tudo muito natural


Acima de todos, acima de tudo
Nos céus dos céus, Deus
Como castigo merecido
Previsivelmente
Permanece em silêncio
Por piedade, por amor
Por compaixão
Contemplando
A cegueira que não o vê
E a surdez que não o ouve


Pobre homem, esquecido sobre a terra
Blasfemando, murmurando
Sonhando , sem nada realizar
Quase se pode dizer
Tal o silêncio
Tal a vergonha
Tal a distância
Entre o pecado
E a santidade
Que sob o chão árido
Dentro e fora da alma
Agora nada existe
Além da imaginação
Murmurante, blasfemante
Que na cidade distante
Como um fantasma de arrependimentos
Segue de perto, os seus passos errantes


Sob um céu de aço e ferro
Diante de um Deus
Com olhar triste 
Tal qual esse menino pródigo
Uma multidão de iguais
Sempre ansiosa
Sempre desesperada
Sempre sonhadora
Pecadora e enganosa
Sempre faminta 
Triste e sedenta
Tropeçando
Como quem foge
Da própria sombra
Se escondendo
E se atropelando
Nos buracos da terra
Segue vagando sem destino
Sofrendo, gritando e sofrendo
Gemendo arrependimentos tardios


Longe de Deus, todos, homens e mulheres
Vidas sem sentido
Existências sem significado
Com coceira nos ouvidos
Querendo ouvir novidades
Cansados de velhos sonhos
Desconfiados de novas esperanças
Frustram-se em cada esquina
Até as maiores distâncias
Que os olhos conseguem enxergar
Só enxergam sangue, cardos e abrolhos


Não há pão suficiente para todos
Só pedras, pedras que ninguém
Sabe como transformar em pães


Haverá pão para todos
Quando todos
Compreenderem
Que não se vive só de pão


O fim vem! O fim vem!
O fim já chegou
começou ontem
Enquanto estávamos
Todos nós, mortos de sono


Longe do Jardim
Perto da fome
Que sina
Entre homens
Que não olham
Para o alto
O desespero reina
E o coração grita
Tudo é possível!
Tudo é impossível!
Tudo é incerto!


Sem fé, sem amor, cheia de dor, a vida segue
Vagando no deserto profundo
Que habita o peito de cada um
Sim, cada homem é deserto
Cardo e abrolhos para o seu próximo


Longe de casa, longe de Deus
Longe de tudo, farto de tudo
Cansado de tudo, carente de tudo
Perto do nada, esperando muito
Colhendo pouco... Colhendo nada
Curvado sob o peso da vida
Parado no alto de uma ponte
Uma pedra no pescoço
Outra pedra na mão
Falando palavras mágicas
Tentando transforá-la em pão
Cão comendo comida de porco
Sob a sombra de um dragão
Roendo o chão
Do fundo do peito seco
Mais forte do que a vida que se esvai
Num avesso de oração
Ecoa o cântico dos derrotados
Derrota! Derrota! Derrota!
Grita a multidão desesperada


Passa um dia, passa um mês, passa um ano
Esgota-se a vida... Depois de mil orações
Ainda se aguarda uma resposta
Depois de dez mil peregrinações
Ainda se espera um milagre
Mas os milagres ja aconteceram
As respostas já foram dadas
Pobres homens de ouvidos surdos e olhos cegos


Cansado de esperar - o que já aconteceu
Cansado de fingir felicidade
Sob a pesada escuridão de um céu 
Que parece silencioso
Só porque ninguém tem ouvidos para ouvir
Que paira pesado, acima de todos nós
Porque repudiamos a leveza
Acima desse chão ferido
Que não crê, mas grita
Fere e amaldiçoa 
Os nossos passos
Desiludido
O fogo se apaga
A luz dos olhos escurece
A fé finalmente morre
O coração não arde mais
E a alma - antes tão crente
Resignada, ri de si mesma
Zomba de sua velha ingenuidade


A vida já não é como antes
O mundo mudou
O coração endureceu
Nãos se curva mais
Tudo parecia tão fácil
Então, sem avisar
Veio a tempestade
O desespero prevaleceu
Longe de casa, longe do Pai
Agora, depois de tantos desertos
Entendeu - neste mundo novo, viver é sofrer


Pobre alma, pobre homem fragmentado
Pobre cidadão desse mundo individualizado
Na alma e fora da alma, tão frágil
Engolido pela multidão desesperada
Cego de tanta imoralidade
Sofreu uma ferida profunda demais
Foi e voltou do deserto
Já não é mesmo
Desacostumou-se da vida
Por hábito, talvez
Ainda ora, ainda reza e ainda chora
Mas no fundo do peito
Onde as orações todas
Ressoam sem resposta
Já não se ilude mais


Para fugir da solidão
Lê um livro velho
Caminha um quilômetro
Todavia, cansado
Só finge alegria
Nas profundezas do ser
Onde ninguém olha ou vê
Cansado de promessas
Já não busca mais respostas impossíveis
Acomoda-se - pouco a pouco
Sem sentir a presença sombria
No leito estéril do destino prescrito


Agora, há um ceticismo no ar
Denso, frio e viscoso
Que penetra até o tutano dos ossos
Há uma falta de fé no amanhã
Há ainda um velha recordação
Bons tempos, quando 
Depois da noite de choro
Ainda se acreditava no amanhã
Mas agora, até do agora, a vida se cansou


Aceitemos a verdade
Para almas leves, a realidade
Essa triste realidade 
O dia a dia
É pesado demais


Dentro do peito
Onde ninguém vê
O coração explode 
Uma guerra de vida e morte
Começou... e ainda não terminou
O tempo da felicidade
Que foi ontem, já passou
Na próxima esquina
Amanhã, ou depois de amanha
Espera-nos, homens e mulheres
Um juízo final...Então, finalmente
Veremos quem é quem
E saberemos quem somos nós
E do que somos feitos
Se de luz ou de trevas



Aos que não se arrependem nunca... Aos zombadores, aos escarnecedores, resta ainda, talvez, um último caminho a ser percorrido, um beco sem saída, uma fuga desesperada para as intermitências do mundo... A escolha primeira e também a escolha derradeira dos derrotados... A mesma das almas cansadas de todas as épocas e lugares, vencidas e desesperadas, um salto no vazio, uma corda no pescoço... Ou, então, numa iluminação inesperada, talvez, num último gesto de fé, dor e desespero, numa última respiração cansada, numa última oração, no último bater do coração acelerado, um súbito arrependimento, como um filho pródigo, virar as costas a tudo, correr para casa, morto de vergonha, renascido no coração, finalmente, cair nas mãos de Deus...
_VBMello

15 de maio de 2018

Quem perdeu a fé, pobre diabo, perdeu tudo

Oh, Deus! Meu Deus! Onde estás?
Pedi fé, deste-me o vazio
Um imenso e profundo vazio
Onde eu ando de um lado para outro
Sem nunca sair do lugar.


Os dias passam - sem parecer que passam
Os amigos e até os inimigos
Foram-se todos... Sobrou o vazio
Solidão absoluta... Absoluta solidão
Quem tem força para suportar isso?
Todavia, algo em mim continua lutando
Vivendo, suportando, vencendo
Rosnando, morrendo e renascendo.


Oh, horror! Onde está a piedade?
Onde está a misericórdia?
Não há mais nada pelo que lutar
Acabaram-se todos os propósitos
Quem perdeu a fé
Perdeu tudo
Perdeu a esperança
E perdeu também o amor.



Nada sobrevive nos vazios da fé
Acordar, viver, dormir, lutar
Nada mais tem valor

Todavia, que horror
Dia após dia
Vai-se existindo
Insistindo contra o vazio

O rosto marcado de insônia
Uma máscara imperfeita
Um sorriso amarelo
Fingindo vida
Mendigando alma
Assim, caminha um terço da humanidade
Que se deixa vencer pela hipocrisia
Fingindo felicidade
Quando o coração é só tristeza


O diabo, sempre ele... Não sei de onde ele veio... Não sei como surgiu... Não sei como chegou tão perto, cochicha em meus ouvidos: "Pobre miserável, você se abandonou... Agora, cheio  e vazio de tudo, a sua vida, você mesmo não valoriza; a sua morte, antes de acontecer, mil vezes, você mata e chora sozinho...Seus sonhos, seus dons, você desperdiça, querendo se economizar. então, agoniza em solidão... Sim, agoniza, pobre miserável sem fé... Talvez amanhã - ou depois de amanhã - Deus atenda aquela sua velha oração desesperada".


O diabo mente... o diabo nunca tem razão
Todavia, dentro e fora da alma cansada
Sem ter um lugar de fé
Para dormir ou descansar
O dia se transforma em dor
E a noite se transforma em pavor
E o pobre homem sem fé
Na desesperança do amanhã
Acredita nas mentiras do diabo
Desmorona, torna-se vítima
E num instante, rápido
Sem ele perceber
O seu hoje, o seu agora
A sua vida toda
É vencida pela dor de uma imensa confusão
E ele é derrotado, sem mesmo lutar
Vencido pelo o desespero
Derrotado pela solidão
Torturado pelo abandono
Encarcerado pela depressão


Aqui, nesse campo de batalha da alma
Chão duro de sangue e pecado
O mais próximo que eu já cheguei do inferno
Onde cada canto iluminado
E uma encruzilhada
Onde a vida estrece e chora
É cada um por si e o diabo contra todos
Não há heróis da fé
Só covardes perambulando
Pela beira de uma estrada larga
Mendigando uma migalha de compaixão


Oh, meu Deus!... Até as maiores distâncias
Que os olhos alcançam na névoa fria do mundo
O que se vê é gente chorando e se lamentando
Não estou sozinho no abismo
Ao meu redor, posso senti-los 
Gemendo na escuridão
Multidões que perderam a fé
Desumanizadas pela frieza
De tantos seres humanos desumanos
Andam em imensos círculos
Sem ir, nem voltar de lugar nenhum
O problema do mundo não é a humanidade
É a desumanidade que ronda bem perto de nós
Transformando homens em cães


Sim, humilhado, pelado
Como um cão sem dono
Danado, amaldiçoado
Correndo atrás do próprio rabo
No coração, resignado
Sem saber o que fazer
Com o sofrimento
Sem encontrar a saída
Do beco sem saída
Cansei de lutar
Parei de de crer
No fundo do coração
Cessou a visão
Enterrou-se o talento
Emudeceram-se as palavras
Cessou a caminhada
E na alma cansada e desesperada, cessou a oração
No peito aflito, cessou a respiração
Cessou tudo, começou a fim


Ouve os sorrisos? Sim, esses sorrisos em volta de mesas fartas?
É o diabo, sim, o diabo... É o abismo festejando a nossa derrota


Eia! Precisamos recomeçar
Precisamos acordar
A depressão mente
Ela sempre mente
Precisamos dizer não
Precisamos voltar ao começo
Precisamos amar
Precisamos recuperar a força de viver
Precisamos retomar a batalha pela nossa alma
Precisamos proteger o nosso coração
Precisamos rir do abismo que ri de nós


Sozinho no meio do nada
Orando mil orações desesperadas
Olho para o alto do céu
O mais alto que posso
Na imensidão
Sem perceber a ilusão
Me sinto imenso
Todavia, como sou pequeno e fraco
Um nada diante do caos


A minha alma, esse campo de batalha
Onde os meus amaldiçoados ancestrais
Ainda amaldiçoam e lutam entre si
Ao som do rilhar de dentes
Ao queimar do fogo
Sob o fio da espada
Quando a carne geme
E estremece... Perde a força
E anseia dormir e nunca mais acordar


Derrota! Derrota! Derrota!
Sob a pesada escuridão do céu silencioso
Que paira acima de nós
O meu coração sabe e não se ilude mais
Já não crê no amanhã
Cansou do agora
Nem perde tempo com esperanças tristes e vazias
É tarde demais...Grita o coração dentro do peito
O tempo da felicidade, que foi ontem, já passou
_VBMello